Coleção de Frases e Pensamentos de Thiago Maciel


9 frases


Thiago Maciel
Areia movediça

Era uma areia fina e molhada, uma planície convidativa. Os pés aos poucos foram introduzidos, engolidos, submersos entre aqueles grãos microscópicos, sem resistência alguma. E sendo cobertos, centímetro por centímetro da pele, os tornozelos logo desapareceram no meio daquela massa, que continuava a escalar as canelas que quanto mais se moviam, mais afundavam. O esforço para sair dali era em vão, e aquele corpo era lentamente consumido como se esse fosse seu único propósito, e os joelhos desapareceram, e já não existia força suficiente para qualquer reação, senão aguardar o aniquilamento iminente, que agora já beirava o abdome, os intestinos e seguia consumindo rumo ao tórax. A pressão aumentava a cada segundo dentro daquele sepulcro irrevogável, que quanto mais fazia imergir aquele cadáver, que dava seus últimos respiros, mais fazia emergir a angústia, a tristeza e o arrependimento que já havia destruído a amplidão do seu interior. Queria poder acelerar aquele sofrimento, deslizar para o fundo e terminar naquele instante. Nem o tempo o favorecia. Era a pena que deveria cumprir, segundo trás segundo, vagarosamente. Era sua sina. Os braços abertos, imóveis, rendidos àquela infelicidade pela exaustão, estavam privados do contato extrínseco, e o único que sentia eram as partículas entrando pelos poros, envenenando-os. Se enterrava. A respiração era difícil, asfixiante, e o esforço para mantê-la era descomunal. Os olhos estavam arregalados quando seu pescoço foi soterrado, e por segundos se pôde ver uma lágrima cair e se misturar com a areia, que logo invadiu a boca, os olhos e encheu os pulmões, em um suspiro inconsolável.

Thiago Maciel
Tinta guache

Hoje, o cheiro da tinta guache ainda o fazia lembrar seus tempos de pré-escola. O cheiro sobreviveu, mesmo após tantos anos, em algum lugar entre seus neurônios, agarrado à sua alma. Sentir aquela essência não era muito comum, e houve um tempo em que ele esqueceu o quanto era bom ter de volta aquelas memórias de sua infância com apenas uma fungada. Era como uma reação em cadeia, que o remetia ao exato local onde ele se encontrava quando tinha apenas seis anos. Fechando os olhos e deixando o ar entrar até o bronquíolo mais distante, conseguia lembrar da cor das paredes, dos cartazes pendurados com desenhos e letras do alfabeto cursivo, das janelas que serviam de suporte para o copinho de feijão plantado no algodão, da mesinha com um papel sujo de tinta, da professora, do bebedouro do corredor, e até do barulho da sirene que anunciava a hora do recreio. Nenhum outro tinha o poder de fazer o que o cheiro da tinta guache fazia. Era sublime. Quase tão bom quanto esse, era o cheiro do jornal gelado. Isso, jornal gelado. Essa combinação tinha o poder de teletransportar, também, ao passado, quando sua mãe trazia picolés do mercado, enrolados em folhas de jornal para que não derretessem no caminho. Ele sentia naquilo um cheiro característico que, agora com alguns anos a mais, o fazia sorrir sozinho, mergulhado naquelas lembranças. Para ele, aquilo era a sua própria máquina do tempo. Tentou, inúmeras vezes, definir qual era o melhor, comparava um com o outro, mas nunca obteve sucesso. Eram tantos cheiros e tantas lembranças. Até aqueles que, para ele, não traziam recordação nenhuma, eram bons e mereciam estar na lista dos melhores. Pensou no cheiro de livro novo, no cheiro de terra molhada, no cheiro de grama cortada, no cheiro de massa de modelar. Lembrou também do cheiro de café recém passado, no cheiro da canela e no cheiro da comida da vó.

Não adiantava. Definitivamente, a tinta guache era incomparável.

Thiago Maciel
Pé - d água

Todas as noites, antes de dormir, ele passava horas pensando. Como em um ritual diário, se deitava, se cobria com um lençol consumido pelo tempo, murmurava as mesmas palavras e queixas dos últimos cinquenta anos. Mantinha seus olhos abertos. Eram duas bolitas negras e úmidas, que se misturavam com a escuridão daquele quarto. Se sentia só. Sentia que seus pensamentos e sua imaginação eram a fuga do enlouquecimento que poderia surgir a qualquer momento, ocasionado por aquela angústia constante. A chuva começou a cair.

Estava deitado, escutando o barulho. Pouco a pouco surgiam as lembranças da sua juventude, que já estavam quase cobertas de poeira, e esta noite ele pensou:

Assim como essa chuva chove, já chovi na vida de muitas pessoas. Entrei na vida de muitas como se tivesse caído do céu, assim, de repente, como quando molha imprevisivelmente. De umas, permaneci por várias estações. De outras desapareci, como uma chuva de verão, que se faz evaporar rapidamente. Lembro-me, também, que já tentei chover para algumas que carregavam guarda-chuvas. Haviam os grandes e os pequenos. Os coloridos e os pretos e brancos. Comecei chovendo aos poucos, e acabei chovendo intensamente, sem perder a serenidade. Eu chovia na vertical e na diagonal. Mas nada adiantava, os guarda-chuvas eram eficazes. Também existiram pessoas que choveram na minha vida. Houve as que caíram como uma garoa que quase não molha, que incomoda. Entretanto, houve as que caíram como um temporal, desses que nos deixam ensopados, às vezes submersos nelas mesmas.

Ainda que pudesse cair a mais fina das garoas, não possuo guarda-chuva. Estou seco, e assim esperarei a próxima gota que cairá sobre mim.



E finalmente ele dormiu.

Thiago Maciel
Thiago Maciel

Membro desde: 05/10/2013

Frase do Dia

Escrever nem uma coisa Nem outra - A fim de dizer todas - Ou, pelo menos, nenhumas. Assim, Ao poeta faz bem Desexplicar - Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

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